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NAS TRINCHEIRAS DA ALEGRIA: um São João de resistência e esperança no Brasil

Para a museóloga e folclorista alagoana Carmen Lúcia Dantas, as festas juninas se revestem de inúmeras lembranças individuais e coletivas, alimentadas de geração a geração e essa resistência mesmo em tempos de pandemia se deve ao seu poder de atualização


Arraiá em casa, 2020 - Foto: Yeshua Bittencourt

“Eu não sei se eu mudei ou mudou o São João”, resmungava nostálgico o nosso eterno Rei do Baião, Luiz Gonzaga, na canção “São João Antigo” lá em 1957. Mais de sessenta anos depois, imagina então como o Gonzagão reagiria ao ano em que as festas juninas tiveram que ser adiadas ou canceladas no Brasil por causa de uma pandemia? A resposta pode ser dolorosa e cheia de desesperança, porém é da força da arte nordestina que o brasileiro mais precisa nesse momento para enfrentar a tristeza que é essa tragédia mundial.

“Nas trincheiras da alegria, o que explodia era o amor” é um dos trechos do refrão da clássica canção de Moraes Moreira e Abel Silva que foi imortalizada na voz de Gal Costa no álbum Fantasia (1981) e até hoje é um hino que não pode faltar nos eventos juninos e de tantas outras festas populares pelo Brasil afora. No momento da criação de “Festa do Interior”, eles possivelmente também não imaginariam que estaríamos enfrentando um ano difícil, com muitas perdas, dias confusos e tentando dançar conforme o caos em um junho atípico no Brasil.

Muito se fala do novo normal, de como iremos enfrentar o mundo, das novas regras de comportamento nos eventos e das novas formas de relações sociais em um universo pós-pandemia. Mas o que pensar do futuro das nossas tradições culturais?

A relação do brasileiro com as festas juninas é tão forte que desde o início da quarentena no país, em março, a internet entrou em polvorosa com a possibilidade do cancelamento daquela que é considerada a melhor festa do ano para muitos. Havia a esperança de que em três meses tudo se resolveria, que o Brasil não estaria caminhando para ser o epicentro da doença, não haveria mais mortes nem sofrimento e que o brasileiro iria encontrar o conforto de uma boa aglomeração do meio do ano.



Para a museóloga e folclorista alagoana Carmen Lúcia Dantas, as festas juninas se revestem de muitas tradições, de inúmeras lembranças individuais e coletivas, alimentadas de geração a geração e essa resistência até os dias de hoje se deve ao seu poder de atualização. “Sem perder os elementos fundamentais, as comemorações em torno dos santos juninos vêm se adaptando ao gosto da juventude, assegurando a sua preservação de forma natural e pungente”, pontua.

Buscando na raiz das comemorações, vemos que as festas juninas têm muita força no Nordeste, pela formação rural que caracteriza a região plantada na sociedade e na economia rural desde a época de sua colonização. “As comemorações em torno de Santo Antônio, São João e São Pedro são ligadas à fartura do milho, alimento provindo do cultivo da terra, da atividade agrária. Estas festas já faziam parte do calendário de eventos religiosos dos portugueses e ganharam muita expressão no Brasil, sobretudo no Nordeste. ”, conta Carmen.

A ficha de que seria um junho bem diferente no Brasil só veio cair mesmo quando os dois maiores eventos juninos do país sofreram alterações: o São João de Campina Grande (PB) foi adiado pela primeira vez desde a criação e está previsto para acontecer entre os dias 9 de outubro e 14 de novembro (a depender do avanço ou recuo da pandemia no Brasil) e a maior festa regional ao ar livre do mundo, em Caruaru (PE), não vai acontecer pela primeira vez em 40 anos.

Um São João sem o famoso “rala bucho”, sem o calor humano das aglomerações em festivais de forró e concursos de quadrilha, sem as quermesses e barraquinhas de comidas típicas, o jeito é a matuta e o matuto do ano de 2020 se aliarem às novas ferramentas e alternativas para não deixar a magia e o colorido da cultura junina se apagarem. De forma consciente, empática e reconfortante, alguns brasileiros se viram mais uma vez como podem.


FESTA DO INTERIOR... DE CASA


A resistência do nordestino em "Craibeira" (2018), Luana Bandeira.

Que a força do povo brasileiro é enorme não é novidade para ninguém e do povo nordestino então nem se fala. Há em nós a obstinação do mandacaru que fulora na seca, do amarelo resistência da craibeira na caatinga (árvore símbolo do estado de Alagoas) e a capacidade de saber passar por momentos de vulnerabilidade com muita garra. É nessa esperança que o jornalista maceioense Yeshua Bittencourt se apegou e movimentou a família inteira para não deixar passar em branco os festejos juninos.


Apaixonado pela época, Yeshua sempre teve uma relação muito forte com a cultura da grande “Festa do Milho” - seja nas reuniões familiares repletas de comidas típicas, da tradicional fogueira na frente da porta, dos fogos de artifício como também na empolgação das danças de quadrilha e coco de roda nos tempos de escola. “Não poder estar com todo mundo como de costume me aperta o coração, mas para não passar batido por aqui resolvemos decorar a área de casa com bandeirinhas e balões, fizemos o banquete na véspera de Santo Antônio e, claro, não faltou aquele forró pé de serra. Para o São João não vai ser diferente. ”, comenta.



“As pessoas já estão, nesta pandemia, buscando o conforto e o deleite que a arte oferece. A música, a literatura, as artes cênicas, os filmes têm preenchido a solidão de muitos. ”, explica Carmen Lúcia. É nessa busca por conforto que as pessoas devem se empenhar e com muita consciência.

Mesmo triste com toda a situação no mundo, Yeshua aproveita para alertar a todos a importância de curtir as festas juninas de forma consciente, respeitando o isolamento social. “Devemos manter o pensamento positivo de que ano que vem estaremos juntos novamente para celebrar o São João. Por enquanto, temos que nos contentar com o que nos é oferecido de forma segura: as lives, decoração artesanal e comidas caseiras. E se a pessoa não souber cozinhar, ainda tem as opções de delivery ou as receitas na internet”, aconselha.


NÃO DERRAME MEU MUNGUZÁ


Munguzá, comida típica citada na famosa canção de Flávio José.

Foi da necessidade de ganhar uma renda extra na quarentena e ainda levar um pedacinho de São João para as pessoas que estão em casa, que a empresária Itaciara Albuquerque, em parceria com a mãe, criou uma rede de serviço de entregas de comidas típicas em Maceió (AL), a “Vixe Comida Boa” (@vixecomidaboa). A data escolhida para divulgação do serviço foi a véspera de Santo Antônio (13 de junho), em que começaram com encomendas na opção de entrega e também no formato “pegue e leve”, tudo respeitando o distanciamento físico.


Desde lá os pedidos só aumentaram e para a véspera de São João, na próxima terça-feira (23), os clientes podem se deleitar com canjica, munguzá, cocada mole, arroz doce, bolo cremoso de milho e uma variedade de comidas que são o conforto dessa época. “Muita gente está querendo receber os produtos em casa devido ao momento em que estamos passando e também pela praticidade. É maravilhoso ver os clientes mandando fotos da sala de casa toda decorada, dizendo que só estão esperando nossa comida para completar a festa. ”, comemora Itaciara.

A esperança de que as festas voltarão com o fervor de antes é o que nos traz conforto para o momento e é nisso que Carmen Lúcia acredita. Para ela, a ideia de louvar os santos em casa, usando o recurso da comunicação à distância é importantíssimo, pois a luta pela vida é o que mais vale neste momento. “Acredito que, dominado o vírus com a conquista científica de remédios e vacinas, as festas juninas voltarão com o fervor de antes, porque todos nós estamos ansiosos para dançar, abraçar, beijar os nossos entes queridos”, almeja.



“Eu trabalho no serviço de entregas de comidas típicas junto com a minha mãe e onde tem mãe e comida, tem muito amor envolvido”, conta Itaciara. E é isso o que mais estamos precisando nesse momento: de amor, de esperança, de memória afetiva e do conforto que só uma boa caneca de munguzá pode trazer.

“Bombas na guerra-magia, ninguém matava, ninguém morria”, é exatamente assim que queremos e precisamos estar nesse momento, meus caros Moraes Moreira e Abel Silva. É na fogueira que arde a nos esquentar a vida inteira que precisamos manter a fé de que a Festa do Interior vai voltar logo mais, explodindo muito amor por aí, com nenhum brasileiro a menos e repleta de calor de uma aglomeração em um forró danado. E o melhor: na voz de Gal Costa.


Por Adolfo Morais

com produção de Flávia Lima



VIXE COMIDA BOA
Instagram: @vixecomidaboa
Contato: (82) 98865-9627
Itaciara Albuquerque





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